Milton Hatoum - A Noite da Espera

Literatura brasileira
Milton Hatoum - A Noite da Espera, volume 1 da trilogia O Lugar Mais Sombrio - 240 Páginas - Editora Companhia das Letras - Lançamento: 27/10/2017 (Leia aqui um trecho disponibilizado pela Editora).

Ótima notícia para a literatura nacional, Milton Hatoum voltou a publicar e com nada menos do que uma trilogia! Nove anos depois do último livro, "Órfãos do Eldorado", o escritor amazonense muda o foco para as cidades de São Paulo, Brasília e Paris em um clássico romance de formação com início nos anos sessenta, durante os Anos de Chumbo do governo militar. 

Este primeiro volume apresenta uma narrativa fragmentada, alternando trechos de diários e cartas do jovem protagonista Martim que, aos dezesseis anos, deixa São Paulo juntamente com o pai para iniciar uma vida nova em Brasilia, depois de uma ruptura traumática do casamento. Martim relembra o seu passado alguns anos depois, já morando em Paris, nos anos setenta, transcrevendo trechos de suas memórias nos períodos de colégio e universidade em Brasília, o aprendizado cultural, político e amoroso, a convivência com um grupo de amigos estudantes de teatro e a criação coletiva de uma revista chamada Tribo, as impressões diante de uma cidade que parece não ter sido projetada pensando em pessoas e na qual, como escreveu Clarice Lispector,  "não há por onde entrar, nem há por onde sair". O trecho abaixo demonstra bem o espanto do jovem Martim diante da nossa capital recém-inaugurada.
"A primeira pessoa que conheci na capital se chama Jorge Alegre, é dono de uma livraria e me deu um mapa de presente. Brasília é uma cidade para quem tem asas ou pode voar. O espaço é tão grandioso que diminui os edifícios (blocos) do Eixo Monumental, manchados por um pó vermelho. Escrevo e olho a fotografia que você me deu na Flor do Paraíso: 'Para que se lembre de mim todos os dias'. A viagem durou mais de quinze horas e eu dormi pouco, eu e meu pai dormimos muito pouco. Onde você vai morar? Por que não me deu seu endereço? (...) Meu pai está na Novacap, o escritório de engenharia e arquitetura; disse que vai comprar uma Rural-Willys, não pode viver sem carro em Brasília, e eu não queria viver aqui. Os bairros e avenidas têm siglas com letras e números, me perdi no primeiro passeio pelas superquadras da Asa Sul, parecia que estava no mesmo lugar, olhando os mesmos edifícios. São bonitos, cercados por um gramado que cresce no barro; essa beleza repetida também me confundiu. Tudo confunde, nada lembra lugar algum. O céu é mais baixo e luminoso, e as pessoas sumiram da cidade." - Carta de Martim para a mãe ao chegar em Brasília (Pág. 28)
Na verdade, Brasília ainda é um espaço muito pouco explorado em nossa literatura, não me ocorre agora nenhuma outra obra relevante que tenha utilizado a cidade como cenário. Neste momento político sem esperanças no qual vivemos agora, com a completa desmoralização do Congresso e a acentuada corrosão das instituições, me parece importante lembrar e entender este período histórico tão marcante em nossa formação contemporânea. O próprio Milton Hatoum, que nunca foi um militante partidário, já declarou que não se trata de um romance político e também definiu o momento de formação retratado no livro como uma passagem da ingenuidade para a maturidade nacional, mas que contém muitos elementos autobiográficos (leia aqui entrevista completa do autor para a Folha).

A desilusão do personagem com o ambiente sombrio em que convive juntamente com os jovens amigos das mais variadas origens sociais, filhos de políticos, diplomatas, funcionários públicos e também de migrantes desfavorecidos e excluídos na pobreza das cidades-satélites, é uma desilusão amplificada pelo seu drama pessoal provocado pelo misterioso afastamento da mãe, Lina, e o convívio forçado com o pai, Rodolfo, um homem amargurado pelo suposta traição e abandono da esposa, deixando a sua infelicidade e frustração criarem um muro intransponível que o separa também do filho e já deixando perceber alguns sinais de uma mente perturbada.
Numa quinta-feira de agosto, quando o campus da UnB foi invadido e ocupado, professores, alunos e deputados da oposição foram espancados e presos, os laboratórios dos cursos de medicina e biologia, destruídos, os animais na mesa de cirurgia agonizaram até a morte, um estudante de engenharia foi baleado na testa... As incursões da polícia ao campus continuaram até o fim do semestre. Nos dias de fechamento da escola, enquanto lia os livros de poesia e teatro emprestados por Jorge Alegre, uma sombra passava pela sala, perscrutava meu quarto e sumia no corredor. Só no dia 14 entendi o motivo do júbilo paterno: o Ato Institucional número 5. Nesta última semana de dezembro, Rodolfo empilhou revistas e jornais na mesa da sala e recortou fotografias do rosto de buldogue pelancudo do marechal Costa e Silva; coleciona rostos militares e civis (o ministro da Justiça que redigiu o AI-5, magistrados e políticos bajuladores) e rasga com raiva as fotos de políticos cassados. A mesa da sala ficou coberta de imagens de heróis do meu pai, e o chão repleto de rostos de papel, cortados em tiras finas, como serpentinas de uma festa macabra. Tive uma vaga consciência de que Rodolfo estava enlouquecendo, percebia sintomas de loucura nos gestos e atitudes dele, e me perguntava quem, ou o quê, ele odiava. (Pág. 55)
Neste primeiro volume da trilogia ainda não fica claro quais motivos levaram Lina, a mãe de Martim, a abandonar o filho e deixá-lo sem notícias, assim como o paradeiro de seus amigos da revista Tribo e a transição da difícil vida em Brasília, assombrada pela repressão policial, até os seus dias em Paris. Para isso, os leitores de Hatoum terão que esperar o lançamento dos outros dois volumes da série com previsão de lançamento para o segundo semestre de 2018 e 2019, respectivamente. Não será um período tão longo depois de um jejum de nove anos sem livros do autor. Ah sim! A linda capa é uma reprodução de Marcos VIlas Boas da pintura "A noite da espera nº 5" de Guilerme Ginane, óleo sobre papel de 2017, um presente do artista especialmente para esta edição.

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