O poeta Roberto Bolaño
Roberto Bolaño (1953-2003) ficou mundialmente conhecido pelo seu monumental romance 2666, publicado postumamente na Espanha em 2004, o livro se transformou em um tremendo sucesso editorial após a tradução americana, lançada no mercado dos EUA em 2008, que elevou o autor chileno (e que todos achavam ser mexicano) à categoria de mito literário, comparado somente aos escritores da geração beat (ver resenhas do New York Times, Guardian e Independent). 2666 foi o vencedor do National Book Critics Circle Award nos Estados Unidos e eleito o livro do ano pela Time Magazine.
O fato é que a produção em prosa de Roberto Bolaño gerou grandes romances como o já citado 2666, Os Detetives Selvagens e O Terceiro Reich, sem falar nos seus contos maravilhosos, caso da antologia Putas assassinas. Tantas boas histórias acabaram ofuscando o talento do autor como poeta. Um belo texto chamado "El Poeta Roberto Bolaño" foi escrito pela espanhola Ouvido García Valdés, outra grande poeta, e incluído no catálogo da exposição "Archivo Bolaño 1977 - 2003", por ocasião dos dez anos da morte do autor em 2013, uma produção do Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona - CCCB. Traduzi abaixo uma parte deste texto, uma bonita reflexão sobre a vida e a poesia na obra de Bolaño.
O Poeta é um Perdedor
"Árvores: raiz, tronco, ramos, os círculos dos seus anos. No final da poesia publicada de Roberto Bolaño se encontra o poema 'Retrato em maio, 1994', no qual o poeta utiliza uma árvore como modelo — o mais antigo modelo, afinal de contas — para a vida. Pertence a 'Um final feliz', uma antologia breve que reúne poemas escritos nos primeiros anos da década de noventa, a época também de 'Minha vida nos tubos de sobrevivência', obra já marcada pela doença e sua sombra. Se a poesia de Bolaño utiliza sempre os materiais da própria vida (e a vida inclui a literatura), nesta zona são frequentes os que denomina autorretratos, assim como fotos isoladas do rolo de um filme existencial. Bolaño escreve para si mesmo e, ainda assim, tende a inserir um 'você' em sua poesia, que toma a figura de Lautaro, seu primeiro filho. Um diálogo com uma vida que está começando, e também a transmissão de um legado, que é a própria vida, agora que suspeita que esteja chegando ao final. Muitos anos antes deste retrato em maio, o autor encerrava um poema e um livro com as palavras 'Desejo que te amem e que não conheças a morte', e a mesma pulsão atravessa estes textos, com lucidez, sem engano nem autoengano.
O poema começa assim: 'Meu filho, o representante das crianças / nesta costa abandonada pela Musa, / hoje completa entusiasta e tenaz quatro anos. / Os autorretratos de Roberto Bolaño / voam fantasmas como as gaivotas na noite / e caem a seus pés como cai o orvalho / nas folhas de uma árvore, a representante / de tudo o que poderíamos ter sido, / fortes e enraizadas no que não muda. / Mas não tivemos fé ou tivemos em tantas outras coisas / finalmente destruídas pela realidade / (A Revolução, por exemplo, esse prado / de bandeiras vermelhas, campos de pastagens férteis) / que nossas raízes foram como as nuvens / de Baudelaire. E agora são os autorretratos / de Lautaro Bolaño os que dançam em uma luz / ofuscante'.
Sonho e fracasso, quadro em que se desenvolve cada geração, ligações que formam a cadeia humana. Ah, se fôssemos como as árvores, não aquelas abençoadas por serem 'apenas sensíveis', mas sim as poderosas árvores enraizadas no que não muda. Sonho e fracasso emolduram cada um dos livros de Bolaño, para quem o sonho primordial, o fundador, foi a poesia, e para quem o fracasso e a perda, que são os do transcurso e transformação da vida, tiveram sempre a forma inevitável da consciência.
A poesia, sim. O que faz necessário perguntarmo-nos sobre o lugar de Roberto Bolaño como poeta. Poeta e narrador, devemos dizer, mas não é comum ouvir falar dele como poeta; o narrador parece tê-lo dominado, ou, mais precisamente, o narrador o havia impedido de existir, porque na realidade o poeta Bolaño para o público e a crítica não parece haver chegado a existir. É certo que publicou antologias e livros de poesia. É verdade também que em 2007 apareceu 'A Universidade Desconhecida', título no qual Bolaño deixou reunida toda a sua obra poética desde 1978, e que ele trabalhou nessas pastas, conforme se entende da nota de Carolina López, sua esposa, até 1998; ou seja, entre os seus 25 e 45 anos. E ainda teríamos que destacar que Bolaño publicou em 2002 — na coleção 'Narrativas Hispânicas' da editora Anagrama — 'Amberes', livro que, sem dúvida, também figura incluído, com o título de 'Gente que se aleja', no conjunto de sua poesia. E que 'Amberes', de fato, foi recebido pela crítica como um romance; com certa reticência, isso sim, porque não foi fácil — segundo assinalaram então alguns leitores — aceitá-lo como romance.
Quando em julho de 2003, poucos dias antes de sua morte, Mónica Maristain lhe perguntou (em entrevista com o título de 'Estrela distante') se ele também via a sua obra 'como a viam seus leitores e críticos: acima de tudo 'Os detetives selvagens' e depois todo o resto', Bolaño respondeu: 'O único romance de que não me envergonho é 'Amberes', talvez porque continua sendo ininteligível. As críticas ruins que recebeu são minhas medalhas ganhas em combate, não em escaramuças com fogo simulado. O restante de minha 'obra', pois bem, são romances de entretenimento, o tempo dirá se algo mais. No momento me dão dinheiro, são traduzidas, me servem para fazer amigos que são muito generosos e simpáticos, posso viver, e bastante bem, da literatura, de forma que queixar-me seria muito ingrato. Mas a verdade é que não concedo muita importância a meus livros. Estou muito mais interessado nos livros dos demais'.
A literatura é uma paixão, desde já; e é uma indústria, dinheiro; pode ser também fome. Roberto Bolaño triunfou como narrador na indústria da literatura porque como poeta — poeta invisível como com frequência resultam os poetas — sentiu que estava destinado à fome. Eu o conheci quando Miguel Casado — ele próprio poeta e crítico, e meu parceiro há 33 anos —, em meados dos anos noventa, depois de ler "Estrela distante', lhe escreveu perguntando-lhe por sua poesia. Não lhe havia visto fazer isso antes, nem voltou a fazer depois.
Bolaño é um poeta. Que abominava — com razão — a 'horda' dos poetas, dos dois lados do Atlântico (E vi / suas carinhas satisfeitas, graves adidos culturais e corados / Diretores de revistas, leitores de editoriais e pobres / Revisores (...) os porcos frios, abside / Ou arranhão no Grande Edifício do Poder'), e que adorava os nomes de alguns verdadeiros poetas." - Ouvido García Valdés (2003)
Recomendo visitar a página do jornal literário Rascunho com alguns poemas de Roberto Bolaño selecionados e traduzidos para o português por André Caramuru Aubert, poemas absurdamente lindos como os três que destaquei abaixo:
SEM TÍTULO
Esperas que desapareça a angústia
Enquanto cai a chuva sobre a desconhecida estrada
Onde te encontras
Chuva: apenas espero
Que desapareça a angústia
Estou dando tudo de mim
POETA CHINÊS EM BARCELONA
Um poeta chinês pensa ao redor
de uma palavra sem chegar a tocá-la,
sem chegar a olhá-la, sem
chegar a representá-la.
Atrás do poeta há montanhas
amarelas e secas varridas
pelo vento,
chuvas ocasionais,
restaurantes baratos,
nuvens brancas que se fragmentam.
OS CÃES ROMÂNTICOS
Naquele tempo eu tinha vinte anos
e estava louco.
Havia perdido um país
mas havia ganhado um sonho.
E se tinha esse sonho
o resto não importava.
Nem trabalhar, nem rezar,
nem estudar de madrugada
junto aos cães românticos.
E o sonho vivia no vazio de meu espírito.
Uma morada de madeira,
na penumbra,
em um dos pulmões do trópico.
E às vezes me revirava dentro de mim
e visitava o sonho: estátua eternizada
em pensamentos líquidos,
um verme branco se retorcendo
no amor.
Um amor desbocado.
Um sonho dentro de outro sonho.
E o pesadelo me dizia: crescerás.
Deixarás para trás as imagens da dor e do labirinto
e esquecerás.
Mas naquele tempo crescer teria sido um crime.
Estou aqui, eu disse, com os cães românticos
e aqui eu vou ficar.
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